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sexta-feira, 27 de maio de 2011

Os Sete Vales


 
Os Sete Vales

Em Nome de Deus,
O Clemente, o Misericordioso.
 
Louvores a Deus, que fez sair do nada o ser, que gravou sobre a tábua do homem os mistérios da pré-existência, que ensinou-lhe dos mistérios da elocução divina aquilo que ele não conhecia e tornou-o um Livro Luminoso para aqueles que acreditaram e se renderam; que o fez testemunhar a criação de todas as coisas nesta negra e ruinosa era, e, do ápice da eternidade, falar com voz maravilhosa no Templo Excelente: a fim de que todo homem possa dar testemunho – em si mesmo e por si próprio – no grau do Manifestante do Seu Senhor, de que em verdade não há Deus salvo Ele, e todos os homens possam assim alcançar o cume das realidades, até que nenhum deles contemple coisa alguma, seja o que for, sem nela ver a Deus. 
 E louvo e glorifico o primeiro mar oriundo do oceano da Essência Divina, e o primeiro alvorecer que raiou no Horizonte da Unicidade, e o primeiro sol que se ergueu no Céu da Unicidade, e o primeiro fogo que se ateou da Lâmpada da Preexistência na candeia da singularidade: Aquele que era Ahmad no reino dos seres excelsos, e Maomé dentre a assembléia dos que estão próximos, e Mahmúd no reino dos sinceros... Por qualquer nome que quiserdes, invocai-O: Ele tem os mais excelentes nomes e nos corações dos que sabem. E sobre Sua casa e Seus companheiros haja paz abundante, permanente e eterna! 
 Ademais, escutamos o que o rouxinol do saber cantou nos ramos da árvore do teu ser, e aprendemos o que o pombo da certeza arrulhou nos ramos do caramanchão de teu coração. Parece-me que inalei, em verdade, as puras fragrâncias das vestes de teu amor e atingi o verdadeiro encontro contigo, ao ler tua carta. E já que percebi a menção de tua morte em Deus e de tua vida através dEle, e de teu amor pelos amados de Deus e pelos Manifestantes de Seus Nomes e Pontos de Alvorecer de Seus Atributos – Eu, pois, revelo-te os segredos e resplandecentes sinais dos planos da glória, para te atrair à corte da santidade, proximidade e beleza, e te levar a uma condição em que nada vejas na criação salvo a Face de teu Bem-Amado, Alvo de toda a honra, e contemples todas as coisas criadas somente como no dia em que de nenhuma se faz menção. Sobre isso cantou o rouxinol da unidade, no jardim de Ghawthíyyih. Disse ele: Aparecerá sobre a tábua do teu coração um escrito dos mistérios sutis de: “Temei a Deus, e Deus dar-vos-á conhecimento”, e a ave da tua alma haverá de relembrar os sagrados santuários da preexistência e elevar-se-á, nas asas do anelo, no céu de “percorre os caminhos trilhados de teu Senhor”, e colherá os frutos da comunhão nos jardins de “Alimentai-vos, pois, de toda espécie de fruto.” 
 Por Minha vida, ó amigo!fosses tu provar desses frutos do jardim verdejante, dessas flores que desabrocham nas terras do conhecimento, ao lado das luzes cintilantes da Essência nos espelhos dos nomes e atributos – o anseio arrancaria de tuas mãos as rédeas da paciência e do comedimento, faria tua alma vibrar com a luz cintilante e te afastaria do lar terreno, alçando-te à morada primaz, celestial, no Centro das Realidades, e elevar-te-ia ao plano em que flutuarias no ar assim como ondas sobre a terra, e te moverias sobre a água assim como corres sobre o solo. Portanto, que cause regozijo a Mim, e a ti, e a quem se eleva ao céu do conhecimento e cujo coração se haja refrescado por isso: o fato de haver o vento da certeza soprado sobre o jardim do seu ser, vindo da Sabá do Todo-Misericordioso. 
 Paz esteja sobre aquele que segue o Caminho Certo! 
 E mais: as etapas que marcam a jornada do peregrino desde a morada de pó até a pátria celestial são consideradas sete. Alguns as têm denominado Sete Vales e, outros, Sete Cidades. E dizem que enquanto o peregrino não se livrar do ego e não percorrer essas etapas, jamais alcançará o oceano da proximidade e união, nem sorverá do vinho incomparável. O primeiro é o 
 
VALE DA BUSCA
O corcel desse Vale é a paciência; sem a paciência o peregrino dessa jornada não chegará a parte alguma e não atingirá nenhum alvo. Jamais deveria ele desanimar; ainda que se esforce por cem milhares de anos e, contudo, não logre contemplar a beleza do Amigo, nem assim deveria vacilar. Pois os que buscam a Caaba de por Nós, regozijam-se nas boas novas de: Em Nossos caminhos Nós os guiaremos. Eles, em sua busca, se têm empenhado fortemente em servir, procurando a todo momento viajar do plano da negligência para o reino do ser. Laço algum os há de impedir, nem conselho os deterá. 
 Incumbe a esses servos purificar o coração – manancial que é de tesouros divinos – de toda a mácula, e afastar-se da imitação, a qual consiste em seguir nas pegadas dos pais e antepassados, assim como precisam fechar a porta da amizade e da inimizade para com todos os povos da terra. 
 Nessa jornada, o peregrino alcança uma condição em que vê todas as coisas criadas vagando aturdidas em busca do Amigo. Quantos Jacós verá ele em busca de seu próprio José! Contemplará muitos apaixonados a se apressarem em busca do Bem-Amado; testemunhará um mundo de seres ardorosos buscando o Desejado. A todo momento encontra ele um assunto poderoso, a toda hora torna-se consciente de um mistério; pois já se afastou de ambos os mundos e partiu em direção à Caaba do Bem-Amado. A cada passo o apoio do Reino Invisível assisti-lo-á, e mais ardente se tornará sua busca. 
 Deve-se julgar a busca pelo padrão do Majnún do Amor. Conta-se que, um dia, encontraram-no ocupado em peneirar o pó, enquanto lhe corriam as lágrimas. Perguntaram-lhe: Que fazes?, ao que respondeu: Busco Laylí! Ai de ti!, exclamaram-lhe, Laylí é de puro espírito e tu a buscas no pó! Disse-lhes: Eu a busco em toda parte; quiçá em algum lugar eu a posso encontrar. 
 Sim, embora para os sábios seja vergonhoso procurar no pó o Senhor dos Senhores, isso, no entanto, indica intenso ardor na busca. Quem com zelo algo procura, haverá de encontrá-lo. 
 O verdadeiro buscador nada procura senão o objeto de sua busca, e o apaixonado nenhum desejo nutre salvo a união com o objeto de seu amor. E jamais o buscador atingirá seu objetivo a menos que sacrifique todas as coisas. Ou seja, tudo o que tiver visto e ouvido e entendido deverá ser posto de lado, a fim de que ele possa entrar no reino do espírito, o qual é a Cidade de Deus. Esforço é mister se quisermos procurá-Lo; imprescindível é o ardor para podermos sorver o mel da reunião com Ele; e se desse cálice provarmos, rejeitaremos o mundo. 
 Nessa jornada o viajante habita em todas as terras, reside em todas as regiões. Em todo semblante procura ele a beleza do Amigo; em cada país busca o Bem-Amado. Associa-se a todos os grupos e procura a companhia de cada alma, a fim de talvez poder descobrir em alguma mente o segredo do Amigo, ou em alguma face contemplar a beleza do Amado. 
 E, se pela ajuda de Deus, encontrar nessa jornada um sinal visível do Amigo invisível, e inalar do mensageiro celestial a fragrância do José há muito perdido, entrará de imediato no 
 
VALE DO AMOR
e será consumido no fogo do amor. Nessa cidade ergue-se o céu do êxtase, e brilha o sol do anelo que ilumina o mundo, e arde o fogo do amor; e quando o fogo do amor flameja, converte em cinzas a colheita da razão. 
 O viajante torna-se agora inconsciente de si próprio e de tudo além de si. Não vê a ignorância nem o conhecimento, nem a dúvida nem a certeza; não distingue entre a manhã da orientação e a noite do erro. Foge tanto da crença como da descrença, e o veneno mortal é para ele um bálsamo. Assim, pois, diz ‘Attár: 
 Para o infiel, o erro – para o fiel, a fé; 
 Para o coração de ‘Attár, um átomo de Tua dor. 
 O corcel desse Vale é a dor; e se não houver dor, jamais terminará essa jornada. Nessa condição, o apaixonado não pensa senão no Bem-Amado, nem busca refúgio algum salvo o Amigo. A todo momento, oferece ele cem vidas na senda do Amado; a cada passo, joga mil cabeças aos pés do Bem-Amado. 
 Ó meu irmão! Enquanto não entrares no Egito do amor, jamais haverás de encontrar o José da Beleza do Amigo; e a menos que abandones teus olhos exteriores, assim como Jacó, jamais haverás de abrir os olhos de teu ser interior; e até que ardas com o fogo do amor, jamais haverás de comungar com o Amigo do Anelo. 
 Quem ama nada teme, nem lhe pode atingir dano algum: tu o vês frio no fogo e seco no mar. 
 Amante é aquele que no fogo infernal se esfria; 
 Sábio é aquele que no mar permanece seco. 
 O amor não aceita nenhuma existência nem deseja vida alguma: vê vida na morte e na vergonha procura glória. A fim de merecer a loucura do amor, o homem deve possuir sanidade abundante; para merecer os laços do Amigo, deve estar cheio de espírito. Bem-aventurado o pescoço preso por seu laço; feliz a cabeça que cai ao pó no caminho de Seu amor. Portanto, ó amigo, abandona a ti mesmo a fim de poderes encontrar o Incomparável; abandona essa terra mortal para que possas buscar uma morada no ninho do céu. Sê como nada, se desejas acender o fogo da existência e te tornares apto para a senda do amor. 
 O amor não aceita uma alma com vida, 
 O falcão não captura um animal já morto. 
 O amor inflama um mundo a cada rotação, e devasta toda terra por onde leva sua bandeira. O ser não tem existência em seu reino; o sábio nenhum mando exerce dentro de seu domínio. O leviatã do amor engole o mestre do raciocínio e destrói o senhor do conhecimento. Ele bebe os sete mares, mas não fica saciada a sede de seu coração, e diz: Há ainda mais? Ele rejeita a si próprio e afasta-se de todos na terra. 
 O amor é um estranho para a terra e para o céu; 
 Setenta e duas loucuras ocultam-se sob o seu véu! 
 Miríades de vítimas tem ele amarrado em suas correntes e miríades de sábios, ferido com sua flecha. Sabe tu que todo rubor no mundo é de sua ira, e toda a palidez nas faces dos homens é de seu veneno. Nenhum remédio concede ele, senão a morte; não anda senão no vale da sombra; nos lábios do apaixonado, porém, mais doce que mel é seu veneno, e aos olhos de quem busca, o próprio aniquilamento é mais belo do que cem mil vidas. Assim, pois, devem os véus do ego satânico ser queimados pelo fogo do amor, para que o espírito possa ser purificado e limpado, e possa assim conhecer a posição do Senhor dos Mundos. 
 Ateia a chama do amor e consome no fogo todas as coisas, 
 Põe o pé, então, na terra dos que amam. 
 E se, confirmado pelo Criador, o apaixonado escapar das garras da águia do amor, haverá de entrar no 
 
VALE DO CONHECIMENTO
 
e sairá da dúvida para a certeza, e volver-se-á da treva da ilusão para a luz do temor a Deus. Seus olhos interiores abrir-se-ão e ele conversará secretamente com seu Bem-Amado; deixará abertos os portais da verdade e da piedade, e fechará as portas das vãs fantasias. Ele, nessa condição, está satisfeito com o decreto de Deus, e vê a guerra como paz, e acha na morte os segredos da vida eterna. Com os olhos interiores e exteriores testemunha os mistérios da ressurreição nos reinos da criação e das almas dos homens, e com coração puro apreende a sabedoria divina nas infindáveis Manifestações de Deus. No oceano encontra ele uma gota; numa gota, contempla os segredos do mar. 
 Rachai o coração do átomo, e eis! 
 Em seu imo um sol encontrareis. 
 O viajante, nesse Vale, nada vê nos desígnios do Verdadeiro senão clara providência, e a todo momento diz: Defeito algum podes ver na criação do Deus de Misericórdia! Torna a fitar: vês tu alguma falha? Na injustiça vê ele justiça, e na justiça, graça. Na ignorância encontra muito conhecimento oculto, e no conhecimento, miríades de sabedorias manifestas. Ele rompe a gaiola do corpo e das paixões e se associa aos que residem no reino imortal. Ele ascende as escadas da verdade interior e se apressa ao céu da significação interior. Ele é levado na arca de Mostrar-lhes-emos nossos sinais nas regiões da terra e em si próprios, e viaja no mar de até que se lhes torne manifesto ser [o Livro]a verdade. E se encontrar injustiça, terá paciência; e se notar ira, manifestará amor. 
 Existiu certa vez um apaixonado que há longos anos suspirava devido à separação da bem-amada, e que languescia no fogo do afastamento. Sob o domínio do amor, seu coração carecia de paciência, e seu corpo entediava-se do seu espírito; a seu ver a vida sem ela era uma zombaria, e o tempo o consumia. Quantos os dias em que ele não achava sossego, tão grande seu anseio por ela; quantas noites em que a dor por ela impedia-lhe o sono. De seu corpo só restava um suspiro; a ferida em seu coração transformara-o num grito de angústia. Teria ele dado mil vidas para provar, uma só vez, do cálice da sua presença, mas isso de nada lhe valeu. Os médicos não conheciam cura para seu mal, e os companheiros evitavam-lhe a companhia. Sim, os médicos não possuem o remédio para quem padece de amor, a menos que o favor da bem-amada o alivie. 
 Finalmente, a árvore do seu anseio produziu o fruto do desespero, e o fogo da sua esperança transformou-se em cinzas. Então, uma noite, não mais podendo viver, partiu de sua casa em direção à praça. De súbito, um vigia começou a persegui-lo. Pôs-se a correr, com o vigia em seu encalço; vieram depois outros vigias, e ao fugitivo fatigado fecharam todos os caminhos. Coração em prantos, o desventurado corria de lá para cá, gemendo consigo mesmo: Certamente esse vigia é ‘Izrá’íl, meu anjo da morte, pois que com tanta rapidez me persegue, ou é um tirano que me procura fazer mal. Os pés conduziam esse ser a sangrar com a flecha do amor, e seu coração lamentava. Alcançou então o muro de um jardim e com dor indizível escalou-o, porquanto era muito alto; então, esquecendo sua vida, precipitou-se no jardim. 
 E eis que aí viu sua bem-amada, com uma candeia na mão, a procurar um anel que perdera. Ao contemplar a amada encantadora, esse apaixonado que havia rendido o coração respirou profundamente e ergueu as mãos em prece, exclamando: Ó Deus! Concede Tu glória ao vigia, e riqueza e longa vida. Pois o vigia era Gabriel a guiar este pobre; ou era Isráfíl trazendo vida a este angustiado! 
 De fato, eram verdadeiras suas palavras, pois descobrira muita justiça secreta nessa aparente tirania do vigia, e vira quanta misericórdia se ocultava atrás do véu. Em sua ira, o vigia havia conduzido aquele sedento do deserto do amor para o mar da amada, e iluminara a noite escura da ausência com a luz da reunião. Ele fizera entrar no jardim da proximidade aquele que estava longe, e guiara uma alma enferma ao médico do coração. Ora, tivesse o apaixonado podido prever isso, desde o início teria abençoado o vigia e por ele orado, e teria visto aquela tirania como justiça; mas já que o fim lhe estava velado, ele no começo gemia e se queixava. Os que viajam pela terra ajardinada do conhecimento, entretanto, porque vêem o fim no começo, percebem paz na guerra, e amizade na ira. 
 Tal é o estado dos que viajam neste Vale; mas os seres dos Vales acima deste vêem o fim e o começo como uma coisa só; não! eles não vêem nem começo nem fim; não testemunharam nem “primeiro” nem “último”. Antes, os habitantes da cidade imorredoura, que residem na terra verdejante, ajardinada, nem mesmo vêem “nem primeiro nem último”; fogem de tudo o que é primeiro e repelem tudo o que é último. Pois estes transpuseram os mundos dos nomes e fugiram para além dos mundos dos atributos com a celeridade do relâmpago. Por isso é dito: A Unidade absoluta exclui todos os atributos. E eles fizeram sua morada à sombra da Essência. 
 Assim, com referência a isso, Khájih ‘Abdu’lláh – que Deus, o Altíssimo, santifique seu espírito amado – fez uma sutil observação e disse uma palavra eloqüente sobre o que significa Guia-nos no caminho certo, ou seja: Mostra-nos o caminho certo, isto é, honra-nos com o amor à Tua Essência, a fim de sermos libertados do volver-nos para nós mesmos e para tudo que não seja Tu, e nos tornemos inteiramente Teus, e conheçamos a Ti somente, e apenas a Ti vejamos, e em ninguém pensemos salvo em Ti. 
 Ainda mais, esses seres elevam-se acima dessa condição, razão pela qual é dito: 
 O amor é um véu entre o amante e a amada: 
 Mais do que isso não me é permitido dizer. 
 Nesta hora, a manhã do conhecimento surge, e as lâmpadas da peregrinação e da busca são apagadas. 
 Mesmo Moisés foi disso velado, apesar de toda luz e poder; 
 Tu, que nem asas tens, não tentes, portanto, ao céu te erguer. 
 Se fores homem de comunhão e oração, eleva-te nas asas da ajuda das Almas Santas, a fim de que possas testemunhar os mistérios do Amigo e atingir as luzes do Amado. Verdadeiramente, viemos de Deus e a Ele haveremos de retornar. Depois de passar pelo Vale do Conhecimento, que é o último plano da limitação, o peregrino alcança 
 
O VALE DA UNIDADE
e sorve do cálice do Absoluto e contempla os Manifestantes da Unicidade. Nesse grau ele rompe os véus da pluralidade, foge dos mundos da carne e ascende ao céu da unicidade. Com o ouvido de Deus ele ouve; com os olhos de Deus, testemunha os mistérios da criação divina. Ele ingressa no santuário do Amigo e compartilha, como um amigo íntimo, do pavilhão do Amado. A mão da verdade ele estende de dentro da manga do Absoluto; ele revela os segredos do poder. Não vê em si próprio nem nome, nem fama, nem posição, mas encontra seu próprio louvor no louvor a Deus. Em seu próprio nome vê ele o Nome de Deus; para ele, Todas as canções provêm do Rei, e dEle vem cada melodia. Ele assenta-se no trono de Dize, tudo vem de Deus, e repousa no tapete de Nenhum poder ou grandeza há, salvo em Deus. Ele contempla todas as coisas com a vista da unicidade, e vê os brilhantes raios do sol divino, que emanam do ponto do alvorecer da Essência, atingirem igualmente todas as coisas criadas, e as luzes da singularidade refletirem-se sobre toda a criação. 
 É claro para ti, ó Eminência, que, durante as etapas de sua viagem, todas as variações que o peregrino percebe nos reinos da existência procedem da sua própria visão. Daremos um exemplo disso, para que seu significado se torne inteiramente claro: considera o sol visível – embora brilhe com o mesmo esplendor sobre todas as coisas e, a mando do Rei da Manifestação, conceda luz a toda a criação, ele, no entanto, em cada lugar se manifesta e dispensa suas graças segundo as potencialidades daquele lugar. Num espelho, por exemplo, reflete seu próprio disco e formato, devido à sensibilidade do espelho; num cristal faz aparecer fogo e, em outras coisas, mostra apenas o efeito da sua irradiação, mas não seu disco inteiro. E, no entanto, através desse efeito, segundo a ordem do Criador, ele treina cada coisa de acordo com a qualidade desta, como bem podes observar. 
 Outrossim, as cores tornam-se visíveis em cada objeto segundo a natureza desse objeto. Num globo amarelo, por exemplo, os raios reluzem amarelos; num branco, são brancos os raios, e, num vermelho, raios vermelhos se manifestam. Portanto, essas variações são do objeto e não da luz irradiante. E se um lugar for fechado à luz, por paredes ou um teto, ficará inteiramente privado do esplendor da luz; nem poderá o sol ali brilhar. Assim é que certas almas inválidas confinaram as terras do conhecimento dentro dos muros do ego e da paixão, e as têm nublado com ignorância e cegueira, ficando privadas da luz do sol místico e dos mistérios do Eterno Bem-Amado; e têm vagueado longe da preciosa sabedoria da Fé lúcida do Senhor dos Mensageiros, sendo excluídas do santuário do Todo-Formoso e sendo banidas da Caaba do esplendor. É o quanto vale o povo desta era! 
 E se um rouxinol alçar vôo do barro do ego e, aninhando-se no roseiral do coração, relatar em melodias das quais uma só palavra traz vida nova e fresca aos corpos dos mortos, e concede o Espírito Santo aos ossos deteriorados desta existência – verás mil garras de inveja, miríades de bicos rancorosos que O perseguem e que, com todas as forças, intentam Sua morte. Deveras, para o besouro uma doce fragrância parece fétida, e para um homem com reuma um perfume agradável é como nada. Foi dito, pois, para a orientação do ignorante: 
 Limpa de tua cabeça a reuma, mal febril 
 E aspira então o Sopro Divino, primaveril. 
 Em suma, as diferenças entre os objetos já se tornam agora claras. Assim, quando o viajante contempla apenas o lugar da manifestação – isto é, quando olha apenas os globos multicolores – vê amarelo e vermelho e branco. É por essa razão que o conflito tem predominado entre as criaturas, e uma tenebrosa poeira provinda de almas limitadas tem encoberto o mundo. Alguns há que miram o fulgor da luz; e alguns há que sorveram o vinho da unicidade: esses nada vêem senão o próprio sol. 
 Assim, por moverem-se nesses três planos diferentes a compreensão e as palavras dos viajantes têm variado, e por isso o sinal do conflito manifesta-se continuamente na terra. Pois há alguns que habitam no plano da unicidade e desse mundo falam, e alguns que residem nos domínios da limitação, e alguns nos graus do ego, enquanto outros se acham completamente velados. Assim, pois, as pessoas ignorantes da época, privadas de um quinhão do esplendor da Beleza Divina, fazem certas alegações e, em cada era e cada ciclo, infligem ao povo do mar da unicidade aquilo que elas próprias merecem. Fosse Deus punir os homens pelos seus feitos perversos, não deixaria Ele sobre a terra uma só coisa vivente! Mas até o fim de um prazo determinado, Ele lhes concede trégua... 
 Ó Meu irmão! Um coração puro é como um espelho; limpa-o com o polimento do amor e do desprendimento de tudo exceto de Deus, para que nele possa brilhar o sol verdadeiro e a manhã eterna alvoreça. Tu verás então, com clareza, o que significa: Nem Minha terra nem Meu céu Me contêm, mas o coração de Meu servo fiel Me contém. E tomarás tua vida em tua mão e a lançarás com infinito anelo diante do novo Bem-Amado. 
 Sempre que a luz da Manifestação do Rei da Unicidade se estabelece no trono do coração e da alma, o brilho dEle torna-se visível em cada membro e elemento do corpo. Então, o mistério da famosa tradição reluz em meio às trevas: Um servo é atraído a Mim em prece até que Eu lhe responda: e quando Eu lhe tiver respondido, torno-Me o ouvido com o qual ele ouve...Pois assim o Senhor da casa apareceu dentro de Seu lar, e todos os pilares da morada cintilam com Sua luz. E a ação e o efeito são dAquele que concede a luz: assim é que todos se movem através dEle e se levantam pela Sua vontade. E é essa a fonte da qual bebem os que estão próximos, assim como é dito: Uma fonte da qual haverão de beber aqueles próximos de Deus... 
 Que ninguém, entretanto, interprete essas palavras como expressão de antropomorfismo, nem nelas veja a descida dos mundos de Deus para os níveis das criaturas; nem devem elas levar-te, ó Eminência, a tais suposições. Pois Deus, em Sua Essência, é santificado acima de ascensão e descida, entrada e saída. Ele, desde toda a eternidade, mantém-Se livre dos atributos das criaturas humanas, e assim será para sempre. Homem algum jamais O conheceu; nunca uma alma descobriu o caminho que conduz a Seu Ser. Todo sábio místico tem vagueado longe, sem rumo no vale do conhecimento dEle; todo santo tem perdido o caminho na tentativa de compreender Sua Essência. Santificado é Ele acima da compreensão dos sábios; exaltado é Ele além do conhecimento dos que conhecem. O caminho está fechado, e procurá-lo é impiedade. Sua prova está em Seus sinais. Seu ser é Sua evidência. 
 Por isso, os que amam a face do Bem-Amado disseram: Ó Tu, Aquele Cuja Essência, tão-somente, mostra o caminho que conduz à Sua Essência, e que estás santificado além de qualquer semelhança com Suas criaturas. Como pode o simples nada galopar seu corcel no campo da preexistência, ou uma sombra fugaz alcançar o sol imperecível? Disse o Amigo: Não fosses Tu, nós não Te teríamos conhecido, e disse o Amado: nem atingido Tua Presença. 
 Sim, o que se tem mencionado em relação aos graus do conhecimento refere-se ao conhecimento dos Manifestantes daquele Sol da Realidade que projeta Sua luz sobre os Espelhos. E o esplendor dessa luz está nos corações, embora se ache oculta sob os véus dos sentidos e das condições desta terra, do mesmo modo que uma vela dentro de uma lanterna de ferro. Somente ao ser removida a lanterna é que a luz da vela irradia. 
 Do mesmo modo, quando despires teu coração do invólucro da ilusão, as luzes da unicidade tornar-se-ão manifestas. 
 Está claro, pois, que até para os raios não há entrada nem saída – quanto menos para aquela Essência do Ser e aquele Mistério tão almejado. Ó Meu irmão, viaja nesses planos com espírito de busca, e não em cega imitação. Um verdadeiro peregrino não será impedido pela clava das palavras, nem barrado pela advertência de alusões. 
 Como pode uma cortina afastar o amante da amada? 
 Nem o muro de Alexandre os pode separar! 
 Segredos são muitos, mas há miríades de estranhos. Volumes não bastarão para conter o mistérios do Bem-Amado, nem essas páginas o poderão esgotar, embora nada mais seja que uma palavra, nada além de um sinal. O conhecimento é um só ponto, mas os ignorantes o têm multiplicado. 
 Com base nisso, pondera também sobre as diferenças entre os mundos.  Se bem que os mundos divinos sejam intermináveis, algumas pessoas, no entanto, referem-se a eles como sendo quatro: o mundo do tempo (zamán), que é o que tem tanto um princípio como um fim; o mundo da duração (dahr) o qual tem um começo, mas cujo fim não é revelado; o mundo da perpetuidade (sarmad), cujo princípio não é visível, mas sabe-se ter fim; e o mundo da eternidade (azal), que não tem começo nem fim visíveis. Embora existam muitas alegações divergentes relativas a esses pontos, causaria tédio se delas tratássemos em detalhe. Assim, alguns têm dito que o mundo da perpetuidade não tem começo nem fim, e denominam o mundo da eternidade de o Empíreo invisível, inexpugnável. Outros têm denominado esses mundos de a Corte Celestial (Láhút), o Céu Empíreo (Jabarút), o Reino dos Anjos (Malakút) e o mundo mortal (Násút). 
 As jornadas na senda do amor são reconhecidas como sendo quatro: das criaturas ao Verdadeiro; do Verdadeiro às criaturas; das criaturas às criaturas; do Verdadeiro ao Verdadeiro. 
 Há muitas afirmações de videntes místicos e doutores de tempos passados que deixei de mencionar aqui, por desagradar-Me o citar demasiadamente dos dizeres do passado; pois a citação das palavras de outrem indica erudição adquirida e não a dádiva divina. Até mesmo o pouco que temos citado aqui é por deferência ao costume dos homens e segundo o modo dos amigos. Além disso, tais assuntos estão além do escopo dessa epístola. Não é por orgulho que não desejamos relatar os dizeres; antes, trata-se de uma manifestação de sabedoria e é uma demonstração de graça. 
 Se Khidr fez naufragar o navio no oceano, 
 Ainda há mil acertos nesse aparente engano. 
 Doutro modo, este Servo considera a Si Próprio como totalmente perdido, como nada, mesmo ao lado de um dos amados de Deus, quanto mais na presença de Seus santos. Louvado seja Meu Senhor, o Supremo! Além disso, nosso objetivo é relatar as etapas da jornada do peregrino, e não expor os dizeres contraditórios dos místicos. 
 Embora já tenha sido dado um breve exemplo acerca do princípio e do fim do mundo relativo, do mundo dos atributos, acrescentamos agora mais um, para que o pleno sentido se possa manifestar. Por exemplo: que tu, ó Eminência, consideres a ti próprio – és o primeiro em relação a teu filho, e o último em relação a teu pai. Em tua aparência exterior, és uma evidência da manifestação do poder nos reinos da criação divina; em teu interior, revelas os mistérios ocultos – que são fideicomisso divino depositado dentro de ti. E, assim, os atributos de ser primeiro e último, de exterioridade e interioridade, no sentido referido, manifestam-se em ti, para que nesses quatro estados a ti conferidos possas compreender os quatro estados divinos, e o rouxinol de teu coração, sobre todos os ramos da roseira da existência, quer visíveis ou ocultos, possa exclamar: Ele é o Primeiro e o Último, o Visível e o Oculto. 
 Essas afirmações são feitas na esfera daquilo que é relativo, devido às limitações dos homens. Doutro modo, aqueles seres que num só passo transpuseram o mundo do relativo e do limitado, indo habitar no belo plano do Absoluto, com sua tenda erguida nos mundos da autoridade e do comando – estes queimaram tais relatividades com uma só centelha, e apagaram tais palavras com uma gota de orvalho. Eles nadam no mar do espírito, e elevam-se no santo ar da luz. Que vida, pois, é possuída por palavras em tal plano, que se pudesse ver ou mencionar “primeiro” e “último” ou outra qualquer? Neste reino, o primeiro é, em si mesmo, o último; e o último é apenas o primeiro. 
 Acende na tua alma o fogo do amor: 
 Queima totalmente pensamentos e palavras no seu calor. 
 Ó meu amigo, mira-te a ti mesmo: caso não tivesses te tornado pai e gerado um filho, não terias ouvido esses dizeres. Agora esquece-te de todos eles, para que possas ser educado pelo Mestre do Amor, na escola da unicidade, e regressar para Deus, e trocar a terra interior da irrealidade por tua verdadeira condição, e morar à sombra da árvore do conhecimento. 
 Ó tu amado! Empobrece-te a fim de que possas entrar na alta corte das riquezas; e humilha teu corpo, para que possas beber do rio da glória e atingir o pleno significado dos poemas sobre os quais perguntaste. 
 Dessa forma, fica claro que essas etapas dependem da visão do peregrino. Em toda cidade verá ele um mundo, em todo vale alcançará uma fonte, em todo prado ouvirá uma canção. Mas o falcão do céu místico tem muita maravilhosa música do espírito em Seu peito, e a ave persa guarda em Sua alma muitas doces melodias árabes; porém, estão ocultas, e ocultas hão de permanecer. 
 Se eu as expressar, mentes inúmeras serão partidas, 
 E se as escrever, penas sem conta serão rompidas. 
 Paz esteja sobre aquele que conclui essa jornada excelsa e segue o Ser Verdadeiro pelas luzes que guiam. 
 E o viajante, depois de haver atravessado os planos elevados dessa jornada superna, adentra o 
 
VALE DO CONTENTAMENTO

Nesse Vale, ele sente as brisas do contentamento divino a soprar do plano do espírito. Ele queima os véus da penúria, e com os olhos interiores e exteriores vê dentro e fora de todas as coisas o dia de: Deus a cada um compensará com Sua abundância. Da tristeza, ele se volve ao êxtase; da angústia, ao júbilo. Seu pesar e seus lamentos cedem lugar ao deleite e ao enlevo. 
 Embora aparentemente os peregrinos desse Vale habitam no pó, interiormente, no entanto, acham-se entronizados nas alturas da significação mística; alimentando-se das infindáveis graças dos significados interiores e sorvem os delicados vinhos do espírito. 
 A língua falha ao tentar descrever esses três Vales, e as palavras são inadequadas. A pena não escreve nessa região; a tinta deixa apenas um borrifo. Nesses planos, o rouxinol do coração tem outras canções e outros segredos que comovem o coração e fazem a alma clamar; mas esse mistério de sentido interior só pode ser sussurrado de coração a coração, confiado apenas de peito a peito. 
 Somente os corações, do êxtase dos sábios místicos podem falar; 
 Pois não há mensageiro ou missiva que o consiga relatar. 
 Por incapacidade devo silenciar, 
 Muita cousa a ser dita; 
 Palavras minhas não as podem relatar 
 Nem há voz que as reflita. 
 Ó amigo, enquanto não entrares no jardim desses mistérios, jamais teus lábios haverão de tocar o vinho imperecível desse Vale. E se tu o provares, protegerás teus olhos de tudo o mais, e sorverás o vinho do contentamento; livrar-te-ás de todas as outras coisas, unir-te-ás a Ele, e sacrificarás tua vida em Sua vereda, e abandonarás tua alma. Todavia, não há outro nessa região a quem tenhas de esquecer: Havia Deus e nada havia além dEle. Pois quem viaja nesse plano testemunha em tudo a beleza do Amigo. Até no fogo vê a face do Bem-Amado. Percebe na ilusão o segredo da realidade, e lê nos atributos o enigma da Essência. Pois ele já queimou os véus com seus suspiros, e penetrou os invólucros com um só olhar; com visão penetrante contempla a nova criação; com coração lúcido abarca verdades sutis. Isso é atestado adequadamente por: E fizemos aguda tua visão nesse dia. 
 Após viajar através dos planos do puro contentamento, o peregrino alcança o 
 
VALE DA ADMIRAÇÃO

e é sacudido nos oceanos da grandeza, e a todo instante sua admiração cresce. Aqui a aparência de riqueza se lhe afigura como a própria pobreza, e a essência da liberdade, como pura dependência. Ora se acha atônito ante a formosura do Todo-Glorioso; ora sua própria vida o deprime. Quantas foram as árvores místicas desarraigadas por este ciclone da admiração; quantas as almas por ele levadas à exaustão. Pois nesse Vale o peregrino é lançado em confusão, mas, aos olhos de quem as atingiu, tais maravilhas são estimadas e benquistas. A todo momento se lhe apresenta um mundo admirável, uma nova criação, e ele passa de espanto a espanto, estupefato ante as obras do Senhor da Unicidade. 
 Em verdade, ó irmão, se ponderarmos sobre cada uma das coisas criadas, haveremos de testemunhar miríades de sabedorias perfeitas, e aprenderemos miríades de verdades novas e maravilhosas. Um dos fenômenos criados é o sonho. Vê quantos segredos nele se acham depositados, quantas sabedorias entesouradas e quantos mundos ocultos. Observa: estás adormecido numa morada cujas portas estão trancadas, mas, de súbito, te encontras numa cidade longínqua, onde entras sem mover os pés ou fatigar o corpo; vês sem fazer uso de teus olhos, e, sem esforço dos ouvidos, ouves; sem língua, falas. E talvez presencies no mundo exterior, dez anos depois, as mesmíssimas coisas que sonhaste essa noite. 
 Ora, há muitas sabedorias que ponderar no sonho, as quais ninguém pode compreender em seus elementos verdadeiros, a não ser os habitantes deste Vale. Primeiro: que mundo é esse onde sem olhos, ouvidos, mãos ou língua, o homem usa todos eles? Segundo: como é que vês hoje, no mundo exterior, a realização de um sonho que previste no mundo do sono há uns dez anos passados? Deves considerar a diferença entre esses dois mundos e os mistérios por eles encerrados, a fim de que possas atingir as confirmações divinas e as descobertas celestiais, e entrar nas regiões da santidade. 
 Deus, o Excelso, depositou nos homens esses sinais para que os filósofos não negassem os mistérios da vida do além, nem tivessem em pouco conta aquilo que lhes foi prometido. Pois alguns se apóiam no raciocínio e negam tudo o que a razão não compreende; entretanto, mentes fracas jamais compreenderão os temas que acabamos de relatar, pois tão-somente a Inteligência Suprema, Divina, é que os pode compreender: 
 Como pode o frágil raciocínio abarcar o Alcorão, 
 Ou a aranha prender uma fênix em sua teia? 
 Todos esses estados hão de ser presenciados no Vale da Admiração, e quem nele viaja busca sempre mais, a todo momento, e não se fatiga. Assim, o Senhor do Primeiro e do Último, ao expor os graus da contemplação e ao expressar Sua admiração, disse: Ó Senhor, aumenta meu assombro diante de Ti! Outrossim, medita sobre a perfeição da criação do homem, e como todos esses planos e estados nele se encerram e ocultam. 
 Consideras a ti próprio apenas um ser insignificante 
 Quando o universo em ti se encerra? 
 Devemos, pois, nos esforçar por destruir a condição animal, até que o significado da condição humana se torne claro. 
 Assim também Luqmán, que bebeu do manancial da sabedoria e provou as águas da mercê, ao demonstrar ao filho, Nathan, os planos da ressurreição e da morte, apresentou o sonho como evidência e exemplo. Relatamos isso aqui para que, através deste Servo efêmero, permaneça uma recordação daquele jovem da escola da Unicidade Divina, daquele ancião na arte da instrução e do Absoluto. Disse ele: Ó filho, se podes deixar de dormir, poderás então deixar de morrer. E, se consegues não acordar após o sono, conseguirás também não ressurgir após a morte. 
 Ó amigo, o coração é a morada de mistérios eternos; não o faças lar de fantasias fugazes. Não dissipes o tesouro da tua vida preciosa com as ocupações deste mundo efêmero. Vens do mundo da santidade, não prendas à terra teu coração. És habitante da corte da proximidade, não escolhas o pó para tua pátria. 
 Em suma, é interminável a descrição dessas etapas, mas, por causa das injúrias que os povos da terra lhe infligiram, este Servo não se acha disposto a continuar: 
 Resta ainda, inacabado, o relato na mão; 
 Mas falta-me ânimo; imploro, pois, perdão. 
 A pena geme, a tinta derrama lágrimas, e o rio do coração move-se em ondas de sangue. Coisa alguma nos pode suceder senão aquilo que Deus nos destinou. Haja paz sobre aquele que segue no Caminho Certo! Após haver ascendido aos altos píncaros da admiração, o viajante alcança o 
 
VALE DA VERDADEIRA POBREZA
E INEXISTÊNCIA ABSOLUTA
Este estado é o da morte do ego, e da vida em Deus; o de ser pobre no ego, e rico no Desejado. A pobreza à qual aqui nos referimos significa ser pobre nas coisas do mundo criado, mas rico nas coisas do mundo de Deus. Pois quando o amante verdadeiro, o amigo devoto, atinge a presença do Bem-Amado, a radiante formosura dEste, e o ardor do coração do apaixonado, farão surgir uma chama que consumirá todo véu e todo invólucro. Sim, tudo o que ele possui, do coração à pele, inflamar-se-á, nada restando senão o Amigo. 
 Quando as qualidades do Ancião dos Dias foram reveladas, 
 As qualidades das coisas terrenas foram por Moisés queimadas. 
 Quem tiver atingido essa condição, achar-se-á purificado de tudo o que pertence ao mundo. Se, pois, for percebido que aqueles que alcançaram o mar da Sua Presença não possuem nenhuma das coisas limitadas desse mundo perecível, quer seja riqueza exterior ou opiniões pessoais, não importa. Pois tudo o que as criaturas possuem é limitado por suas próprias limitações, e tudo o que o Verdadeiro possui está disso santificado. Deve-se ponderar profundamente sobre essa asserção, a fim de que seu intuito se torne claro. Verdadeiramente, o justo beberá do vinho temperado na fonte de cânfora. Se for conhecida a interpretação de “cânfora”, a verdadeira intenção tornar-se-á evidente. Esse estado é o da pobreza da qual se diz: A pobreza é Minha glória. E na pobreza, seja interior ou exterior, há muitas etapas e muitos sentidos que não julguei pertinentes aqui; reservei-os, pois, para outra ocasião, dependendo daquilo que Deus possa desejar ou o destino impor. 
 Esse é o plano onde são destruídos, no viajante, os vestígios de todas as coisas, e, no horizonte da eternidade, surge da treva o Semblante Divino, e torna-se manifesto o sentido de: Tudo na terra há de passar, menos a Face de teu Senhor. 
 Ó Meu amigo, ouve de coração e alma as canções do espírito, e valoriza-as como valorizas teus próprios olhos. Pois as sabedorias celestiais, à semelhança das nuvens primaveris, não regarão para sempre o solo dos corações humanos; e, embora a graça do Todo-Poderoso jamais se aquiete e jamais cesse, no entanto, para cada tempo e cada era é designado um quinhão, e uma dádiva lhe é conferida – e isso numa determinada medida. E coisa alguma há que não seja suprida de Nossos depósitos; e não a dispensamos, a não ser numa medida determinada. A nuvem da mercê do Bem-Amado rega somente o jardim do espírito, e só na estação primaveril é que concede esse favor. As outras estações não participam dessa, a maior das graças, nem é concedida às terras estéreis porção alguma desse favor. 
 Ó irmão! Nem todo mar tem pérolas; nem todos os ramos florescerão, tampouco sobre todos cantará o rouxinol. Antes, pois, que o rouxinol do paraíso místico se recolha para o jardim de Deus, e os raios da manhã celestial voltem ao Sol da Verdade, faze um esforço para que, nesse monte de pó que é o mundo mortal, possas aspirar, quiçá, uma fragrância do jardim eterno, e viver para sempre à sombra dos habitantes dessa cidade. E quando tiveres atingido esse grau supremo, e entrado nesse plano mais grandioso, então contemplarás o Bem-Amado, e tudo mais esquecerás. 
 O Bem-Amado brilha agora por toda parte, 
 Ó homens de visão, sem véu algum que O aparte. 
 Abandonaste agora a gota da vida e atingiste o mar dAquele que concede a vida. É esse o alvo que pediste; se for a vontade de Deus haverás de alcançá-lo. 
 Nessa cidade, até os véus de luz se rompem e se esvaecem. Sua beleza véu algum tem a não ser a iluminação; Seu semblante, disfarce algum salvo a revelação. Que estranho! Embora o Bem-Amado esteja tão visível como o sol, no entanto, os desatentos buscam ainda as lantejoulas e o vil metal. Sim, a intensidade de Sua revelação O encobriu, e a plenitude de Sua irradiação O ocultou. 
 Tal qual o sol radiante a Verdade brilhou, 
 Mas que lástima! À cidade dos cegos chegou. 
 Nesse Vale, o viajante deixa para trás as etapas da “unicidade da Existência e da Manifestação”, atinge uma unicidade santificada acima desses dois graus. O êxtase, tão-somente, pode abranger este tema, e não palavras ou argumento. Quem tiver permanecido nessa etapa da viagem, ou recebido um sopro dessa terra ajardinada, conhece isso de que falamos. 
 Em todas essas viagens, o peregrino não se deve desviar da Lei nem pela grossura de um fio de cabelo, pois isso, de fato, é o segredo do Caminho e o fruto da Árvore da Verdade. Em todas essas etapas deve ele aderir às vestes da obediência aos mandamentos, e segurar-se à corda do afastamento de todas as coisas proibidas, para que seja nutrido do cálice da Lei e informado sobre os mistérios da Verdade. 
 Se alguma das exposições deste Servo não for compreendida, ou levar à perturbação, ela deverá ser indagada novamente, a fim de que não reste nenhuma dúvida, e o sentido se torne tão claro como o Semblante do Bem-Amado a brilhar da Posição Gloriosa. 
 Para essas viagens não há término visível no mundo do tempo, mas o peregrino desprendido – se a confirmação invisível descer sobre ele e o Guardião da Causa o ajudar em sete sopros; antes, até em um só sopro, se Deus assim quiser e desejar. E isso é de Sua graça àqueles de Seus servos que Lhe aprouver concedê-la. 
 Os que voam no céu da singularidade e alcançam o mar do Absoluto, consideram essa cidade – que é o grau da vida em Deus – como o mais alto estado dos sábios místicos, e a mais remota pátria dos que amam. Mas, para este Ser efêmero do oceano místico, esse estado é o primeiro portal da cidade do coração; e o coração é dotado de quatro etapas, as quais seriam descritas, se fosse encontrada uma alma irmã. 
 Quando a pena se pôs a delinear esse grau 
 Despedaçou-se, e a página se rompeu. 
Salám! 
 Ó Meu amigo! Inúmeros cães perseguem esta gazela do deserto da unicidade; inúmeras garras procuram dilacerar este rouxinol do jardim eterno. Corvos impiedosos espreitam este pássaro dos céus de Deus, e o caçador da inveja espia este cervo no prado do amor. 
 Ó Shaykh! Faze de teu esforço um vidro para que talvez possa proteger esta chama dos ventos da oposição; apesar de que esta luz anela por ser acesa na lâmpada do Senhor e por brilhar no porto do espírito. Pois a cabeça que foi erguida no amor de Deus, seguramente cairá pela espada, e a vida que se torna ardente devido ao anelo, certamente será sacrificada, e o coração que recorda o Bem-Amado seguramente haverá de transbordar sangue. Quão bem foi dito: 
 Vive livre de amor, sua paz é angústia; 
 Seu começo é dor, e seu fim é morte. 
 Paz esteja sobre aquele que segue o caminho reto! 
 Os pensamentos que expressaste quanto à significação da espécie comum de pássaro conhecida em persa como Gunjishk (pardal) foram considerados. Tu pareces ser bem fundado na verdade mística. Entretanto, em cada plano, cada letra recebe um significado que se relaciona àquele estado. Na verdade, o peregrino descobre um segredo em cada nome, um mistério em cada letra. Em um sentido, essas letras referem-se à santidade. 
 Káf ou Gáf (K ou G) referem-se a Kuffi (livra-te), ou seja: Livra-te daquilo que tua paixão deseja, então avança para teu Senhor. 
 Nún (N) refere-se a Nazzih (purifica-te) ou seja: Purifica-te de tudo salvo dEle, para que possas entregar tua vida em Seu amor. 
 Jím (J) é Jánib (retira-te), ou seja: Retira-te do limiar do Verdadeiro, caso ainda possuas atributos terrenos. 
 Shín (Sh) significa Ushkur (agradece): Agradece a teu Senhor em Sua terra para que Ele, em Seu céu, te possa abençoar; embora, no mundo da unicidade, esse céu é o mesmo que Sua terra. 
 Káf (K) refere-se a Kaffir (retira), ou seja: Retira de ti os invólucros das limitações, para que possas vir a conhecer aquilo que não conheceste a respeito dos estados da Santidade. 
 Fosses tu atender às melodias deste Pássaro mortal, partirias em busca do cálice imortal e deixarias de lado toda taça perecível. 
 Que a paz esteja sobre os que trilham o Caminho Certo! 
 

                 Bahá’u’lláh

Fonte:http://www.bahai.org.br/brasilia/Sete_Vales.htm

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